Arquivo de novembro, 2012

Homo Sapiens Imobile

Publicado: 13 de novembro de 2012 por Bill em A Vida
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O vento agita-se violentamente perto das arvores mais altas. Elas choram. Não deitam lágrimas, nem soluços. Mas ouça o vento, esse farfalhar é o jeito delas chorarem. Mas seu choro não é de tristeza, é de ódio. Ódio puro, sentimento bem conhecido por nós humanos, mas não pelas árvores. Elas não sabem o que é isso, ou se souberam já tinham se esquecido dele. Mas agora as árvores estão despertas para o ódio, insones, furiosas. E a última vez que isso aconteceu aqueles lagartos grandes desapareceram da terra. Foi uma noite sombria aquela, mas o dia seguinte não foi muito melhor. Foi nessa manhã ainda que os insetos desceram por suas costas e se espalharam pelo chão. Foi ainda nessa manhã que começaram a importuná-las. Mas nenhuma árvore, nem a mais desconfiada delas, poderia imaginar que esses insetos exterminariam tantas e tantas delas antes da manhã terminar.

– Jorge.

Jorge acorda perdido.

– Jorge.

– Oi.

– Quero manga.

Jorge suspira alto, tentando mostrar toda sua involuntariedade. Ele olha no relógio. 3:04. Ótimo. Mais um suspiro. Jorge calça suas sandálias e levanta-se nu. Ele tateia no escuro em busca do interruptor e uma vez a luz acesa, pega o roupão atirado por cima de um comodo qualquer e sai do quarto pisando forte. Manga. Manga. A palavra martelava sua cabeça quando encontrou a fruteira na cozinha, vazia. Jorge quase soltou um grito de raiva. Esmurrou e chutou a porta da cozinha três vezes antes de abri-la e sair para o quintal. O vento bateu forte no peito nu e ele puxou o cordão do roupão e amarrou-o a cintura. Enquanto procurava a vara que usava para derrubar as mangas, uma manga caiu em sua cabeça e Jorge desequilibrou-se no susto e caiu de cara no chão coberto de mangas. Puto, Jorge voltou para casa e de lá voltou com um machado. Uma machado grande e afiado, presente de casamento. E Jorge cortou, cortou, passou horas cortando a árvore, de modo que antes dela cair o sol já se levantava no horizonte. Juntou todos os pedaços e pôs fogo neles. A fogueira foi enorme. Tão grande que sua mulher acordou assustada, achando que a casa pegava fogo. Quando saiu para o quintal, Jorge gritou para ela que não lhe pedisse mais mangas que ele não respondia por si. A mulher olhou a fogueira enorme atrás dele e calou-se.

Jorge ficou a fitar a fogueira até que a última brasa morresse. Mesmo quando começou a chover, dali só se moveu quando nada mais restasse do que cinzas. A chuva apertou e Jorge voltou para casa. Sem tomar banho, atirou-se por debaixo dos lençóis e abraçou a barriga da mulher, desejando o nascimento do filho. Quando o sono sopesou-lhe os olhos, uma ventania sacudiu o teto, com tal força, que o telhado despregou-se,  a mulher de Jorge acordou assustada uma segunda e última vez naquele dia e viu a silhueta das árvores por entre um relâmpago  Quatro mangueiras rodeavam o quarto, uma delas segurava um machado. Pegaram Jorge e sua mulher e os levaram para o quintal, ali, antes de lhes arrancarem pernas e braços, abriram a barriga da mulher de Jorge e comeram-lhe o filho, deixando somente o coração, que foi enterrado no quintal. Do que sobrou dos pais, fizeram uma grande fogueira. Uma fogueira enorme e só saíram dali quando nada mais restasse do que cinzas. As árvores não ficaram felizes com isso, nem satisfeitas, mas cansadas. Não dormem a muito tempo e essa coisa, esse ódio, é tão forte, tão absurdo, que pôde subverter a natureza das árvores, movimentá-las. As árvores ficam suas raízes fundas na terra e tentam esquecer que se comportaram como o homo sapiens saurus. Anos depois, a árvore plantada pelas mangueiras pensa ter tido um sonho ruim, em que podia se locomover e falar. Suas folhas tremulam, arrepiadas. Que pesadelo!